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‘Fazer botox e pedir nota de consulta causa prejuízo a todos’

31 de julho 2023 Paulo Araripe Jr.

Para diretora da FenaSaúde, fraudes oneram não só operadoras, mas também os beneficiários Advogada e diretora executiva da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), principal associação do setor

Na ofensiva dos planos de saúde contra fraudes, um dos grandes objetivos da advogada Vera Valente, diretora executiva da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), principal associação do setor, é mostrar como os gastos indevidos com práticas fraudulentas acabam onerando não só o caixa das empresas, mas, principalmente, o bolso dos beneficiários. Como mostrou o Estadão, o número de notícias-crime e ações cíveis movidas pelas operadoras para denunciar fraudes subiu 884% entre 2018 e 2022, passando de 75 para 738 no período. Leia a seguir os principais trechos da entrevista com Vera Valente.

Beneficiários de planos de saúde reclamam de mensalidades cada vez mais caras e operadoras falam em crise financeira. Por que esses reajustes não são suficientes para garantir a sustentabilidade do setor?

Por causa da pandemia, represou-se alguns procedimentos e, logo depois, teve um pico de procura do sistema e esse uso se manteve em níveis superiores ao que era antes da pandemia. Não sabemos se isso veio para ficar ou se é pontual, mas a sinistralidade em 2022, ou seja, qual porcentual do que você arrecada é usado para pagar a assistência, bateu recorde, com quase 90%, e a gente também observou um aumento do custo de uma série de insumos. Soma-se a isso a questão das fraudes, com o uso do reembolso para fraudar o sistema. Isso sai do bolso de todo o mundo, isso onera a todos. Se você está fazendo um botox de R$ 2 mil e pegando nota fiscal de consulta, alguém também pode estar usando esse mesmo sistema que você paga para pegar um reembolso de R$ 200 mil, então, no final, todo mundo se prejudica porque, no mutualismo, vai sair do bolso de todos quando vier um reajuste. Outra questão é a do rol exemplificativo e do rol taxativo. Por que não pode ter um rol exemplificativo? Por que você tem que ter uma lista? Porque a lista traz segurança. Ela tem tudo comprovadamente relevante em termos de tratamento. Independentemente do financiamento da saúde ser público ou privado, você tem que saber o que você vai pagar porque senão não tem orçamento que chegue.

Pode pagar tudo? Pode. Só que isso vai sair do seu bolso. É isso que as pessoas não fazem a conexão. Essa fantasia de que pode dar tudo para todo o mundo não existe em nenhum lugar do mundo. Isso tira totalmente a previsibilidade, compromete os cálculos atuariais. Essa previsibilidade é a base para segurança do negócio da operadora, mas também para as pessoas. Nessa discussão do rol, a ANS mudou uma resolução e tornou as terapias ilimitadas. Esse custo também foi a níveis muito superiores. Quando você torna ilimitado, você traz um estímulo ao abuso, houve oportunismo. A gente viu propaganda no Instagram de clínicas procurando crianças autistas. E ainda tem situações como o famoso medicamento Zolgensma (remédio para atrofia muscular espinhal), que custa R$ 7,5 milhões na saúde suplementar e R$ 5 milhões para o SUS. Algumas operadoras pequenas não faturam em um ano o custo desse medicamento. Se ela tiver uma prescrição, quebra.

Com o rol exemplicativo, vamos ter que incorporar várias terapias na casa dos milhões, estamos falando de terapias caríssimas, como a terapia gênica. Tem ainda a judicialização, o envelhecimento da população da saúde suplementar. Se você não tiver uma forma de ampliar a base de jovens para também trazer quem usa menos para ajudar a pagar, não se sustenta. Então, a gente está num momento extremamente crítico.

Sobre as terapias ilimitadas, há casos, como os de crianças autistas, que a carga horária de sessões necessárias é maior. Qual seria o modelo ideal, para evitar fraudes, mas garantir o acesso a quem precisa?

Tem criança que faz 40 horas de terapia por semana, mas temos casos de crianças fazendo 80 horas por semana. Não tem o menor cabimento, esse número mostra que tem abuso. A gente teve caso de operadora que entrou em contato com a família falando que iria cancelar o plano porque ele não foi pago e ouviu da mãe que ela iria ligar para a clínica porque eles deviam ter esquecido de pagar. Ou seja, a clínica pagava o plano para faturar em forma de reembolso. Tem clínica que dá cashback para os pais. Então, pegou-se um tema sensível, uma situação complicada, e as pessoas estão sendo usadas. O alerta que eu tenho feito sobre essa coisa da fraude é que você está sendo usado para pessoas enriquecerem ilicitamente. Então, não se deixe usar. E essa percepção do abuso no uso das terapias é generalizada entre as operadoras da FenaSaúde. Um caminho que elas estão adotando é criar núcleos próprios de atendimento para essas crianças.

Sobre o aumento do número de idosos e queda do de jovens nos planos de saúde, alguns especialistas dizem que, se nada for feito, o plano pode virar um artigo de luxo para idosos. Acredita que isso vá acontecer?

Essa questão da longevidade não é só brasileira, é um desafio para os sistemas de saúde de todo o mundo. Se você olhar isso de uma forma mais abrangente, temos que estimular as pessoas mais novas a cuidar da saúde para não ter o agravamento de doenças. Mas isso é num cenário mais de longo prazo. No momento atual, o que aconteceu é que vai ficando caro, os jovens não contratam, as empresas menores não oferecem o plano como um benefício, então há uma expulsão desses jovens. Pode virar um artigo de luxo e isso não é ruim só para a saúde suplementar, é ruim para o sistema de saúde como um todo, porque essas pessoas vão procurar o SUS. Qual é o caminho que a gente acredita? Fazendo coisas diferentes do que está sendo feito. Você precisa ter um plano mais simples, um plano de consultas e exames.

As operadoras precisam ter previsibilidade, mas se o consumidor receber um reajuste de 30%, o pagamento do plano pode ficar inviável. Qual seria a equação possível nesse caso?

A gente já levou alguns estudos, algumas alternativas para a ANS, mas existem caminhos. Rever a fórmula de cálculo segundo características regionais é um exemplo. É no sentido de caminhar para algo que não seja uma fórmula única para todos os planos, mas algo que você possa levar em consideração especificidades.

Em 2022, os planos fecharam com déficit operacional. Qual é o cenário esperado para este ano, tendo em vista os números dos primeiros meses?

A gente fechou o primeiro trimestre com uma leve recuperação. Veio de seis trimestres consecutivos de prejuízo operacional e fechou 2022 com quase R$ 11 bilhões de prejuízo operacional. A gente, no primeiro trimestre de 2023, teve uma leve recuperação, mas teremos um melhor retrato do que o ano promete quando os números do segundo trimestre fecharem.

Publicamos uma matéria sobre a judicialização dos custos, mostrando que o número de ações voltou ao nível pré-pandemia. Como vê esse cenário?

Existe uma rede de advogados que incentiva essa judicialização. Então continua sendo um enorme desafio, e a judicialização é a pior forma de acesso, porque ela se dá para um em detrimento de vários, se dá muitas vezes na hora errada e ela é cara. A gente continua conversando muito, inclusive no âmbito do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), para que tenha um repositório, uma fonte que o juiz possa consultar e se sentir tranquilo emocionalmente, até para falar ‘não’.

Autor: Fabiana Cambricoli
Referência: Estado de São Paulo