Opinião
Ah, as estatísticas da saúde suplementar…! Tentando enxergar um pouco além
05 de julho 2022 Marcio Serôa de Araujo Coriolano
Tenho refletido sobre os dados publicados da evolução do número de beneficiários de planos médico-hospitalares privados. Usualmente, muitos – inclusive eu mesmo – tendemos a analisar a evolução baseados no “saldo final” de cada período. E sabemos que houve período recente de relativa estagnação, e agora mais recentemente ainda, um crescimento marginal.
Mas, do ponto de vista das perspectivas do sistema privado como um todo, bem como de seu desempenho e qualidade, fiquei a pensar qual a formação desses “saldos finais”, se resultantes de i) um acréscimo/decréscimo, nas margens, de entradas; ou ii) de um acréscimo/decréscimo fruto da diferença entre cancelamentos e ingressos.
Razões para cancelamentos podemos sempre intuir, a partir das circunstâncias brasileiras do mercado de trabalho, limitações do orçamento de benefícios das empresas contratantes, e perda de renda real da população contratante. Da mesma forma, explicações para os ingressos – a despeito das dificuldades – normalmente passam pela necessidade de proteção em presença ou não de experiências pandêmicas, pressão laboral pelos benefícios e maior consciência da preservação da saúde.
De modo mais “granular”, para quem milita na área da saúde suplementar, ficamos cogitando o que aquelas diferenças na formação dos “saldos finais” podem ter a dizer sobre o equilíbrio geral do sistema privado, particularmente sobre i) a interrupção ou continuidade da assistência (inclusive com afetação dos prontuários de pacientes e de seus cuidados em curso); e, ii) sobre a formação dos custos assistenciais e de sua evolução. Neste último caso, menores cancelamentos poderiam ter o condão de uma melhoria no cuidado como um todo (mantido tudo o mais constante; não me referindo aqui à qualidade da prestação dos serviços), reduzindo custos, ao passo em que o contrário, maiores cancelamentos, teriam efeito inverso: mais cuidado para os novos entrantes e, portanto, maiores custos iniciais.
Como nada é simples no mundo da saúde, mormente na suplementar, fiquei também a refletir que, dependendo da modalidade dos planos (coletivo empresarial, sem carências, e os demais), “saldos finais” decorrentes de maiores ingressos do que cancelamentos poderiam estar a contribuir para explicar a redução das taxas de crescimento dos custos assistenciais per capita que estamos verificando desde 2018/2019 (*). Isso, porque é de se supor que, pelo menos durante algum período, os novos entrantes ainda precisariam ser diagnosticados e aprender a utilizar as suas “redes” de atendimento médico-hospitalar. E, como o longo prazo é formado de curtos prazos, uma dinâmica de “saldos finais” decorrentes de cancelamentos/ingressos poderia influenciar a queda das taxas de variação dos custos per capita. É óbvio que não exclusivamente. Digo apenas contribuir, porque presumimos a melhoria dinâmica da gestão, novos modelos de atendimento e assim por diante.
(*) Ao final destas Notas, uma tabela com a evolução do número de beneficiários e do custo real per capita.
Tendo isso tudo em mente, preparei uma tabela simples com dados agregados anuais de cancelamentos, ingressos e saldos de beneficiários de planos de saúde médico-hospitalares. Portanto, são dados médios do conjunto de planos com diversas e complexas diferenças entre eles, que mesmo os não iniciados já conhecem. A tabela vem a seguir.
Tabela 1
EVOLUÇÃO DOS INGRESSOS, CANCELAMENTOS E SALDOS DE BENEFICIÁRIOS DE PLANOS DE SAÚDE MÉDICO-HOSPITALARES – 2015 – 2021
ANO | INGRESSOS | CANCELAMENTOS | SALDO |
2015 | 15.818.059 | 16.998.950 | -1.180.891 |
2016 | 14.583.989 | 16.188.364 | -1.604.375 |
2017 | 13.425.730 | 13.922.367 | -496.637 |
2018 | 13.647.317 | 13.620.739 | 26.578 |
2019 | 14.417.775 | 14.476.033 | -58.258 |
2020 | 13.732.636 | 13.297.122 | 435.514 |
2021 | 15.365.800 | 13.850.131 | 1.515.669 |
Fonte: ANS
Conforme a minha intuição, e, tenho certeza, a de muitos do setor, os “saldos finais” derivam mesmo da diferença entre grandes volumes de cancelamentos e de ingressos. Nada podendo-se dizer mais sobre o percurso individual de cada um dos beneficiários que cancelaram ou foram cancelados; quer dizer, se saíram e voltaram ao longo da série de anos, se mudaram de operadora, de modalidade, entre outras possibilidades. Essa curiosidade pode ser satisfeita com bases de dados mais sofisticadas e modelos econométricos manejados por gente habilitada para tanto. Torço para que esse exame possa progredir, em benefício mesmo de um conhecimento que ajude todos a compreender melhor, pelo menos, a evolução dos beneficiários do sistema privado e a formação e variação dos custos setoriais.
Concluindo minhas intuições até aqui, parece que, em presença desse volumoso fluxo de entradas e saídas, pode-se supor que o lapso de tempo necessário para que os entrantes se capacitem a navegar nos seus benefícios empresariais, familiares ou individuais, bem como os períodos de carências característicos de determinadas modalidades – este menos provável porque o resultado positivo recente foi mais devido aos planos coletivos empresariais -, podem estar a contribuir (de novo, contribuir) para as menores taxas recentes de crescimento dos custos médico-hospitalares. Poderão alguns argumentar que “sempre foi assim” e que, portanto, nada haveria a concluir, embora a mudança recente, positiva, do sinal dos “saldos finais” pode ter mesmo algum efeito. Caso não haja influência alguma, ficaremos todos felizes a atribuir a queda da velocidade dos custos exclusivamente à melhor gestão, supervisão setorial e novos modelos assistenciais.
Tabela 2
VARIAÇÃO ANUAL DE BENEFICIÁRIOS E DO CUSTO MÉDIO REAL PER CAPITA
2009/2020-2021
ANOS | VAR% BENEFICIÁRIOS | VAR% CUSTO REAL PER CAPITA |
2009 | 2,6 | 3,8 |
2010 | 5,6 | – 0,2 |
2011 | 2,4 | 5,2 |
2012 | 4,0 | 6,4 |
2013 | 3,4 | 5,3 |
2014 | 2,1 | 7,3 |
2015 | – 2,5 | 6,2 |
2016 | – 3,2 | 7,0 |
2017 | – 1,1 | 7,5 |
2018 | – 0,04 | 3,8 |
2019 | – 0,1 | 4,7 |
2020/2021 | 2,2 | 1,6 |
FONTE: ANS; IBGE; cálculos próprios.
CUSTO REAL: Deflacionado pelo IPCA médio de cada ano.
OBS: 2020/2021: Variação média geométrica; para harmonizar o efeito da política de reajustes sobre o repasse de custos no período.
Finalizando, e voltando a torcer por novas evidências, os fatos são de cancelamentos de beneficiários de planos de saúde médico-hospitalares superiores a ingressos no período 2015/2019 (exceção feita a pequeno saldo positivo em 2018), sem substanciais alterações na variação do custo assistencial real per capita, e comportamento inverso de beneficiários em 2020 e 2021 acompanhado de redução das taxas reais de variação de custos. Sobre estas taxas, nada ainda a comemorar, por óbvio, tendo presente a persistência da inflação médica muito acima da inflação geral de preços, ainda mais em conjuntura desfavorável à reposição da perda da renda das pessoas e do orçamento de benefícios das empresas.